14 de outubro de 2020

Serrinha Tlec Tlec

Dá para imaginar o que é uma serrinha tlec tlec? Pois é! Essa coisa estranha faz parte da minha história. Faz parte também de uma singela passagem de minha vida ainda criança, no convívio de meus pais e avós. Eu lhes conto! 

Eu tive um irmão que também se chamou Emmanuel. Ainda nos primeiros meses de vida, Deus entendeu que devia levar Emmanuel para o seu aconchego e assim foi cumprida a sua vontade. Daí então Luiz Aguiar e Rosalina Ribeiro trataram de trabalhar direito novamente, trazendo ao mundo, em 06 de janeiro de 1955, o segundo Emmanuel. 

Aqui estou eu, já cinquentão, mas ainda com gás e memória suficiente para relembrar e contar essa história. Eu fui o primeiro neto de Graziela e de Manuel Ribeiro. Meu avô era mais conhecido como Manuel Ribeiro do J. Soares, tradicional loja de ferragens que ficava localizada em frente ao Mercado Municipal de Manaus. Quando nasci, meus pais já haviam passado a morar juntos com meus avós, na avenida Getúlio Vargas, quase na esquina com a rua Ramos Ferreira. Sendo eu o primeiro filho e neto dentro de casa, obviamente todas as atenções eram voltadas para mim, o que era muito paidégua. O tempo ia passando e essa atenção se multiplicando, principalmente em termos de carinho. Não tenho do que reclamar e, confesso – me orgulho de ter sido criado com vó. A diferença é que eu tinha a mais linda e carinhosa vovó do mundo. Sabia ser dura nas horas certas e dava preferência por puxar as minhas orelhas, em lugar de me aplicar boas palmadas, que já era uma especialidade da minha mãe Rosalina. Papai, sempre sereno, optava por dar sermões, que no fundo doíam mais do que os puxões de orelhas de vovó e as palmadas de mamãe. 

Tudo ia muito bem, até que surgiu uma conversa dentro de casa de que um tio meu, chamado Manoel Henriques Ribeiro, ia chegar a Manaus. Comecei a perceber que as atenções e a alegria do ambiente de casa não eram mais uma exclusividade minha. Eu sabia pouca coisa desse tio, a não ser que foi estudar e morar num lugar muito longe, numa cidade chamada Bauru, no interior de São Paulo. Pouco me importava naquele momento de onde ele vinha, mas sim o espaço que eu ia ter que dividir com ele dentro de casa. O espaço que eu falo, era o espaço no coração dos meus avós Graziela e Manuel Ribeiro. Eu ainda não compreendia naquele momento, que em nossos corações, quando o assunto é amor, na verdade existe lugar para todo mundo. 

Pronto - chegou o dia! O sujeito desembarcou e veio mesmo para bagunçar o meu coreto. Para começar, de cara deixei de ser o homem mais lindo da casa. Todo mundo que olhava para ele dizia – ah, como você está lindo Manuelzinho! Vovó sorria e chorava ao mesmo tempo. Enquanto ela se derretia em lágrimas, eu, do lado dela, grudado que nem um carrapato, me derretia todo mas era de ciúmes. Pô, tudo bem! Eu até estava convencido de que o cara era boa pinta mesmo, mas estava invadindo de sola o meu espaço. A minha preocupação rapidinho passou a ser outro, ou seja, descobrir quando era que ele ia embora. 

Tio Manoel não fazia a menor ideia da minha ciumeira. Comecei a cercá-lo para saber até onde ia a sua ousadia de tomar o meu espaço. Lembro bem, já em casa, deitado na rede de meu avô e vendo eu ali cercando e atento a tudo, ele me chamou pela primeira vez para conversar. Começou a me fazer um monte de perguntas e a criar situações de brincadeiras. Até então eu não fazia ideia de que tio da gente gostava dessas coisas – perguntar um monte de besteiras e brincar feito um palhaço. Até hoje repito para chamar a atenção das crianças, o que ele fazia para mim. Coisas de palhaço! Vovó chamava isso de presepadas. Mas o pior de tudo é que eu estava adorando. 

Comecei a sentir ali naquele momento que a minha preocupação era boba, pois ocupávamos espaços bem diferentes, e que na verdade eu estava ganhando naquele instante mais alguém na minha vida para me cercar de carinho e de atenção. Quando paramos a brincadeira, ele levantou da rede e me deu um abraço. Desse abraço em diante, ganhei muito mais que um tio - eu ganhei um outro pai e amigo, a quem dedico essa singela passagem da história de minha vida. Entre as coisas que temos em comum, eu e tio Manoel temos uma grande e eterna paixão que é cantada assim: timãoooo ê ô, timãoooo ê ô , timãoooo ê ô, timãoooo ê ô... 

Passado alguns dias depois desse primeiro bate-papo real, mágico e cheio de brincadeiras que tinha acontecido entre eu e tio Manoel, senti que dava para maneirar um pouco com a minha ciumeira. Passei então a arrumar desculpas para estar por perto e ganhar a atenção dele. Valia de tudo! Pegava meus brinquedos, um por um, e levava para ele conhecer. Até que um dia, sem nenhum brinquedo mais para mostrar, resolvi apelar de outra forma. Cheguei junto e perguntei: 

- Tio, o senhor sabe onde está a minha serrinha? Sem saber do que se tratava, ele argumentou – que serrinha essa? Aquela que faz tlec, tlec – completei. A casa inteira nesse dia foi mobilizada para procurar a tal serrinha tlec tlec, mas fui eu mesmo que acabei achando. Afinal, nada havia se perdido. Dei aquela enrolada, peguei o brinquedo supostamente desaparecido e fui correndo para mostrar ao tio Manoel. Aproximei-me da rede onde ele estava deitado no quarto de vovó e gritei: – Achei a minha serrinha tlec tlec. Tio Manoel olhou meio que espantado, e só então veio a entender que a tal serrinha tlec tlec, que eu dizia ter sumido dentro de casa, nada mais era do que um revólver de brinquedo plástico, que quando acionado o gatilho, fazia o barulho tlec, tlec. 

O certo é que eu armei e acabei me dando mal. Depois desse episódio e de muita gozação, ganhei o meu primeiro apelido de que tenho lembrança – serrinha tlec tlec.